Por Pedro Henrique Bandeira Sousa
RESUMO
Desde o ano de 2016, a Arbitragem se voltou para um novo nicho em âmbito nacional, a Arbitragem Esportiva. Contudo, a previsão para se utilizar da arbitragem como meio de resolução de litígios no campo esportivo encontra-se disposto na legislação desde o ano de 2011, com as alterações havidas na Lei 9.615/98, a Lei Pelé. A previsão constante nesta lei contém requisitos que praticamente inviabilizam a arbitragem, motivo pelo qual sua escolha pelo mercado permaneceu inerte até o ano de 2017, com a Reforma Trabalhista que alterou a Consolidação das Leis do Trabalho. A Reforma trouxe a possibilidade de se utilizar da arbitragem em dissídios individuais do trabalho, fomentando a escolha da arbitragem como meio de resolução de disputas. Contudo, no âmbito do Direito Esportivo ainda há os obstáculos criados pela Lei Pelé. Este artigo pretende discutir a relação entre os dois dispositivos legais, suas aplicações aos casos hodiernos e como os requisitos, criados pela Lei Pelé, não mais devem ser observados, a luz dos motivos que justificaram sua criação.
INTRODUÇÃO
Um dos setores da arbitragem nacional que vem se consolidando no mercado e crescendo ano a ano é a Arbitragem Esportiva, especialmente desde a criação da Câmara Nacional de Resolução de Disputas da Confederação Brasileira de Futebol (CNRD/CBF ou CNRD), que se destina a resolver litígios relacionados ao mundo do futebol, dentro das especificidades e peculiaridades do esporte, envolvendo participantes do futebol brasileiro e sob jurisdição da CBF.
Até o mês de maio de 2020 [1] , mais de 650 procedimentos arbitrais já haviam sido iniciados na Câmara, donde se depreende que mais de 10% efetivamente foram recorridos para o Centro Brasileiro de Mediação e Arbitragem. Só no ano de 2019 foram 230 procedimentos iniciados na Câmara e em 2020, até o mês de maio, já havia 96 processos distribuídos.
Segundo o que dispõe o Regulamento da CNRD [2] , entre as competências enumeradas no artigo 3º, há uma que merece especial destaque a luz do que dispõe a Lei Pelé (Lei 9.615/98) e a Consolidação das Leis Trabalhistas, após a chamada Reforma Trabalhista de 2017, que é a competência para conhecer litígios entre clubes e atletas, de natureza laboral, desde que de comum acordo entre as partes, com garantia de processo equitativo e respeito ao princípio da representação paritária de atletas e clubes.
De um lado, a Lei Pelé traz exigências não previstas na CLT para que a arbitragem seja instituída, tampouco o Regulamento da CNRD. Por outro, parte da doutrina e do judiciário entende que tais exigências são produtos de lei específica, motivo pelo qual não podem ser ultrapassadas, o que inviabiliza a instituição da arbitragem.
Desta feita, será objeto de discussão no presente ensaio justamente a aplicabilidade dos requisitos da Lei Pelé para se instituir a arbitragem antes e após a Reforma Trabalhista, bem como as decisões judiciais já prolatadas acerca da matéria e até que ponto o assunto foi explorado nas mesmas.
O principal objetivo deste esforço é iniciar o debate acerca da aplicação da Lei Pelé aos procedimentos arbitrais, bem como demonstrar que a não observância dos requisitos não está em desalinho com a legislação e com o instituto da arbitragem.
No primeiro momento, será definida a especialidade da lei de acordo com o momento da celebração do contrato, posto que a disposição em debate na Lei Pelé foi inserida no ano de 2011, ao passo que a Reforma Trabalhista ocorreu em 2017. Assim, deve ser verificado se a Reforma Trabalhista, de alguma forma, revogou o dispositivo da Lei Pelé, ainda que tacitamente, para se averiguar qual a aplicabilidade de ambos os dispositivos aos contratos e procedimentos arbitrais.
Da Legislação Aplicável Lei 12.395/2011 – Lei Pelé e a gênese de paráfrago único do artigo 90-c
O dispositivo cujo conteúdo é o cerne da questão em tela não existia no texto originário da Lei Pelé. Trata-se do artigo 90-C e seu parágrafo único, inseridos pela Lei 12.395/11, cujo texto dispõe que:
Art. 90-C. As partes interessadas poderão valer-se da arbitragem para dirimir litígios relativos a direitos patrimoniais disponíveis, vedada a apreciação de matéria referente à disciplina e à competição desportiva.
Parágrafo único. A arbitragem deverá estar prevista em acordo ou convenção coletiva de trabalho e só poderá ser instituída após a concordância expressa de ambas as partes, mediante cláusula compromissória ou compromisso arbitral.
Foi a primeira demonstração legal de que a arbitragem era uma opção para a resolução de litígios no âmbito esportivo, prática que já era amplamente utilizada no cenário internacional, através do Tribunal Arbitral do Esporte – Tribunal Arbitral du Sport/Court Arbitral for Sport (TAS/CAS ou somente CAS). Embora a sua introdução na Lei Pelé tenha ocorrido no ano de 2011, tem-se que a discussão para esta inserção se iniciou no ano de 2005, apenas dois anos quando já se tinha a segurança necessária para tanto.
Entretanto, juntamente à abertura para utilização da arbitragem disposta no caput do artigo 90-C, a Lei trouxe dois requisitos para que a mesma pudesse efetivamente ocorrer: (i) previsão em acordo ou convenção coletiva de trabalho e (ii) existência de convenção de arbitragem.
Com a inserção do parágrafo único no artigo 90-C, criou-se um condicionante externo, alheio à vontade das partes em resolver os litígios por arbitragem, posto que, pela leitura fria do artigo, independe se as partes querem instaurar a arbitragem: não havendo previsão em acordo ou convenção coletiva de trabalho, a arbitragem está vedada.
Tal requisito foge completamente à essência do instituto da Arbitragem, que é um método de resolução de disputas onde as partes, através da autonomia da vontade, confiam a um árbitro ou tribunal o poder para dirimir uma disputa, sem a participação do Poder Judiciário. A Lei Pelé, ao condicionar a vontade das partes à previsão em acordo ou convenção coletiva de trabalho, impõe limite à autonomia da vontade das partes de forma indevida e cria um obstáculo não previsto na própria Lei de Arbitragem.
Impõe-se destaque que o artigo final do Artigo 90-C não representa primeira intenção do processo legislativo para a arbitragem. Consoante disposto no texto do Projeto de Lei 5.186/05 da Câmara dos Deputados [3], convertida para o Projeto de Lei da Câmara 9/2010 e que que inseriu o referido artigo no corpo do Projeto de Lei de Conversão 1/2011 do Congresso Nacional [4]:
“O art. 90-C, incluído pelo Projeto de Lei n.º 5.186/05, introduz o juízo arbitral como alternativa à solução de conflitos. Para isso determina que as partes interessadas poderão livremente submeter as questões estritamente desportivas ao juízo arbitral, desde que decorrentes de cláusula compromissória fixada em instrumento contratual, convenção coletiva de trabalho ou constante de disposição estatutária ou regulamentar da respectiva entidade nacional de administração do desporto, vedada a apreciação de matéria referente à disciplina e à competição desportiva.”
Ou seja, a intenção legislativa era que a previsão em acordo ou convenção coletiva de trabalho fosse uma alternativa à inexistência de celebração de convenção de arbitragem pelas partes.
E mais! Trazia a possibilidade da utilização da cláusula arbitral por referência, comum no mundo do Desporto, cuja doutrina já teve oportunidade de esmiuçar tanto em âmbito nacional quanto internacional.
Tratam-se de cláusulas de arbitragem que não estão no contrato entre as partes ou em um documento especial para esse fim, mas em um texto separado – estatuto ou termos contratuais – que completa por referência o contrato original. No caso em tela, como diz o texto do projeto, no estatuto da entidade nacional de administração do desporto.
Ainda assim, não havia no texto o pré-requisito de que a arbitragem estivesse obrigatoriamente prevista no acordo ou convenção coletiva de 502/2010, que iniciou o movimento de alteração da Lei Pelé e acabou por sendo convertida no supracitado Projeto de Lei de Conversão 1/2011 do Congresso Nacional, conforme quadro comparativo do referido projeto [7]:

O quadro comparativo [8] acima ilustra perfeitamente que o referido artigo foi inserido apenas no Projeto de Lei de Conversão, e não na Medida Provisória de origem.
Retornando-se ao Projeto de Lei 5.186/05, verifica-se que a alteração do artigo para constar em sua forma final se deu pelo fato que à época não se admitia a inserção de cláusula compromissória em contratos individuais de trabalho, conforme se depreende do voto do Relator Deputado José Rocha [9] :
“Observe-se que nem contrato individual de trabalho e muito menos disposição estatutária ou regulamentar de entidade nacional de administração do desporto, como pretende o Projeto, podem, sem afronta ao texto constitucional, instituir cláusula compromissória.
(…)
A doutrina majoritária defende que os direitos do trabalhador, especialmente aqueles elencados no artigo 7º da Constituição Federal, são indisponíveis, sendo, dessa forma, irrenunciáveis, inflexíveis e não transacionáveis, como é o direito ao salário mínimo, ao fundo de garantia do tempo de serviço, às férias, ao décimo terceiro salário, ao próprio registro em carteira do contrato de trabalho entre outros.
(…)
A polêmica está na aplicação da arbitragem nos dissídios individuais. Nesse ponto também há unanimidade de pensamento, na doutrina e na jurisprudência, ou seja, a tendência é não admitir arbitragem nos dissídios individuais. Na hipótese, o mais adequado seria a mediação, que no âmbito da Justiça do Trabalho já foi utilizada pelos juízes classistas, e, agora, é promovida pelos juízes togados nas fases processuais conciliatórias.
Portanto, o que se percebe é que a realidade jurídica vigente quando da alteração da Lei Pelé foi determinante para a alteração do texto do Projeto de Lei para o texto final do artigo 90-C da Lei Pelé – situação esta que se modificou no ano de 2017.
Assim, a saída encontrada pelo legislador foi a inserção do parágrafo único, tomando-se como exemplo a possibilidade de se utilizar da arbitragem para os dissídios coletivos e aplicar tal possibilidade aos dissídios individuais, como asseverado no parecer:
“É majoritário o entendimento doutrinário e jurisprudencial quanto à aplicação e à viabilidade da arbitragem nos dissídios coletivos, porque tanto os empregados como os empregadores teriam o respaldo de suas respectivas entidades sindicais.”
Veja que aqui o legislador se utilizou de uma ratio legis bem objetiva, qual seja, deve haver a previsão da arbitragem estar prevista em acordo ou convenção coletiva de trabalho para dissídios individuais porque assim ocorre em dissídios coletivos. Era a única forma de viabilizar a arbitragem no primeiro caso, uma vez que já se utilizava no segundo, e não porque ele entendeu que deveria ser desta forma desde a sua criação, desde a sua ideia inicial.
Neste passo, o artigo 90-C, bem como seu parágrafo único, não foi questionado ao longo dos anos pois sua utilização era escassa, por falta de previsão legal na Consolidação das Leis Trabalhistas que viesse a legitimar a arbitragem em assuntos laborais para dissídios individuais. Permaneceu, portanto, na Lei, inconteste e inutilizável, até o advento da Reforma Trabalhista em 2017.
No ano de 2017, após anos de expectativa e apreensão do mercado, sobreveio a Reforma que modificou o universo do Direito do Trabalho, abrindo de uma vez por todas as portas para a Arbitragem em assuntos de natureza laboral.
Isto porque foi inserido ao corpo da CLT o artigo 507-A, que dispõe:
Art. 507-A. Nos contratos individuais de trabalho cuja remuneração seja superior a duas vezes o limite máximo estabelecido para os benefícios do Regime Geral de Previdência Social, poderá ser pactuada cláusula compromissória de arbitragem, desde que por iniciativa do empregado ou mediante a sua concordância expressa, nos termos previstos na Lei nº 9.307, de 23 de setembro de 1996.
Assim, para que pudesse ser celebrada a convenção de arbitragem, quatro eram os requisitos: (i) que fosse um contrato individual de trabalho; (ii) que a remuneração pactuada fosse superior a duas vezes o limite máximo estabelecido para os benefícios do Regime Geral de Previdência Social; (iii) que a iniciativa para a celebração da convenção de arbitragem fosse do trabalhador e; (iv) não sendo sua a iniciativa, que houvesse concordância expressa para sua celebração.
Importante se destacar que a CLT é a legislação master no que tange ao direito dos trabalhadores e a inserção do artigo 507-A não trouxe consigo qualquer tipo de condicionante externa para a celebração da convenção arbitral ou instituição da arbitragem. Os requisitos dispostos no texto do artigo têm ligação direta com o trabalhador, com a relação entre empregado e empregador, mas não à pessoa estranha à esta relação.
Voltando à esfera do Esporte e da Arbitragem Esportiva, verifica se a existência destes dois dispositivos aplicáveis à matéria e que trazem requisitos que, aparentemente, não são conflitantes entre si. Contudo, percebe-se que, ao passo que o art. 507-A/CLT não inviabiliza a aplicação do art. 90-C, caput e parágrafo único, da Lei Pelé, a recíproca não é verdadeira, posto que este último traz um verdadeiro obstáculo à utilização do 507-A/ CLT para se iniciar a arbitragem.
Em outras palavras, para se iniciar um procedimento arbitral, não bastaria o preenchimento dos requisitos do art. 507-A/CLT, mas sim os do art. 90-C, parágrafo único, da Lei Pelé, em que pese tais requisitos estarem em desalinho com a essência do instituto da Arbitragem.
O ponto nodal aqui é a mudança do cenário jurídico em relação aquele da criação do parágrafo único do art. 90-C da Lei Pelé o que, por si só, demonstra que a proteção objetivada pelo legislador não mais subsiste.
Repisando-se os argumentos do Projeto de Lei responsável pela adoção do parágrafo único, há unanimidade de pensamento, na doutrina e na jurisprudência, ou seja, a tendência é não admitir arbitragem nos dissídios individuais. Contudo, o artigo 507-A da CLT modificou este pensamento, alterou completamente a realidade da possibilidade de se admitir arbitragem em dissídios individuais, tanto que restou positivado na abertura do referido artigo: “[n]os contratos individuais de trabalho (…)”.
Não mais há a justificativa que embasou o parágrafo único do artigo 90-C, criado unicamente para afastar discussões desnecessárias: justamente o que o artigo 507-A cimentou com sua redação.
Assim, aliado ao fato de a Reforma ser uma lei posterior à lei que alterou a Lei Pelé (2017 x 2011), deve ser destacado que não só é mais específica, como mais adequada à realidade dos dissídios trabalhistas modernos. Contudo, deve ser analisada a questão da antinomia jurídica para que o argumento que se propõe seja sustentado.
A Revogação Do Art.90-C, Paráfrago Único, da Lei Pelé.
Conforme ensina a Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro (LINDB), em seu artigo 2º:
Art. 2º Não se destinando à vigência temporária, a lei terá vigor até que outra a modifique ou revogue.
§ 1º A lei posterior revoga a anterior quando expressamente o declare, quando seja com ela incompatível ou quando regule inteiramente a matéria de que tratava a lei anterior.
§ 2º A lei nova, que estabeleça disposições gerais ou especiais a par das já existentes, não revoga nem modifica a lei anterior.
§ 3º Salvo disposição em contrário, a lei revogada não se restaura por ter a lei revogadora perdido a vigência.
A hipótese em tela é a do parágrafo primeiro, supracitado, que se define do ângulo de sua extensão como “derrogação”, que é espécie de revogação, força contrária à vigência da lei anterior e que fulmina sua obrigatoriedade. Segundo esta espécie, atinge-se somente uma parte do dispositivo derrogado, deixando íntegra as disposições não alcançadas. Caio Mario ensina que “[d]errogada, a lei não fenece, não sai de circulação jurídica, mas é amputada nas partes ou dispositivos atingidos, que apenas estes perdem a obrigatoriedade [10] .
Esta é o caso em tela, donde se depreende que o art. 507-A/CLT não revogou por completo o parágrafo único do art. 90-C, da Lei Pelé, mas tão somente a necessidade da previsão em acordo ou convenção coletiva de trabalho. Trata-se do novo dispositivo que regulamenta matéria que tratava a lei anterior, justificando a aplicação do art. 2º, parágrafo primeiro, da LINDB.
Por um lado, o disposto na parte final do dispositivo – o segundo requisito – qual seja, a necessidade da concordância de ambas as partes, mediante celebração de convenção de arbitragem, já se encontra disposto no corpo da Lei de Arbitragem, senão vejamos:
Art. 3º As partes interessadas podem submeter a solução de seus litígios ao juízo arbitral mediante convenção de arbitragem, assim entendida a cláusula compromissória e o compromisso arbitral.
Ademais, o art. 507-A/CLT faz menção expressa à Lei de Arbitragem, motivo pelo qual esta parte do parágrafo único do art. 90-C da Lei Pelé encontra-se intocado.
De outra parte, como já dito alhures, a revogação do primeiro requisito do referido dispositivo se dá justamente pelo fato que o Legislador inseriu tal disposição pois, à época, havia um consenso acerca da impossibilidade de se optar pela arbitragem no tocante aos dissídios individuais.
Trata-se, quanto a forma de atuação, de caso de revogação “tácita”, onde não há um apontamento direto da revogação pela nova norma. E, para se concluir pela derrogação tácita da norma, utiliza-se o critério da “incompatibilidade” entre as normas, entre a matéria regulada e as disposições antes vigentes [11] .
Assim, ao passo que o art. 507-A/CLT expressamente traz à vida esta permissão, por óbvio a razão de ser do parágrafo único do art. 90-C da Lei Pelé cai por terra e não mais pode subsistir. A mesma não mais é eficaz por não mais respeitar sua essência.
Novamente trazendo à discussão dos ensinamentos de Caio Mario, trata-se do princípio “cessante ratione legis cessat et ipsa lex” [12] . Ou seja, cessa se a vigência da lei pelo definitivo desaparecimento das circunstâncias que ditaram a sua criação [13] .
Como dito, a discussão para a inserção do art. 90-C, e respectivo parágrafo único, se iniciou no longínquo ano de 2005, quando a realidade jurídica da arbitragem trabalhista era totalmente diferente do ano de 2017. O legislador da Reforma Trabalhista, atento à evolução do instituto da Arbitragem, positivou a possibilidade da arbitragem em dissídios individuais
Ademais, a utilização da arbitragem em dissídios individuais, como demonstrado em capítulo anterior, foi uma saída encontrada pelo legislador a exemplo do que acontecia nos dissídios coletivos, mas jamais objetivando que, efetivamente, houvesse um condicionante para a prevalência da autonomia da vontade das partes. E, nos dissídios coletivos, a arbitragem é possível pois tanto empregado como empregadores teriam o respaldo das entidades sindicais: daí a utilização deste cenário em dissídios individuais, positivado no parágrafo único do art. 90-C.
Isto é importante pois caracteriza o dispositivo como sendo um dispositivo de circunstância; o legislador utilizou-se de uma possibilidade existente em dissídios coletivos, apenas porque em dissídios individuais seria vedado. Agora que já é possível, com o advento do art. 507-A/CLT, não mais é necessária a utilização da “saída” proveniente de dissídios coletivos.
Um argumento que surge é o fato de a Lei Pelé supostamente ser “especial”, enquanto a CLT é “geral” e, portanto, “a lei geral posterior não derroga a especial anterior” [14], consoante parágrafo segundo do art. dispositivo especial face ao art. 507-A/CLT posto que, além de aplicar uma regra de dissídios coletivos à dissídios individuais unicamente por não haver, à época, possibilidade de utilizar em dissídios individuais, tem-se que o mesmo foi inserido por Projeto de Lei paralelo à Medida Provisória 502 que efetivamente foi convertida na Lei 12.395/11, não estando no texto original.
Já o art. 507-A/CLT sim, é especial em relação a todos os contratos individuais e a possibilidade de se utilizar da arbitragem nestes casos. Em matéria de direito do trabalho e arbitragem, não há regra mais especial do que o art. 507-A/CLT.
Ademais, estamos diante, como já explicado, de lei nova que regulamenta matéria anteriormente tratada pela lei antiga, ou seja, aplicação do parágrafo primeiro, e não segundo, do art. 2º da LINDB.
Mas a discussão é válida e necessária, merecendo alguns apontamentos sobre a antinomia jurídica [15] para demonstrar que o princípio eternizado no art. 2º, parágrafo segundo, da LINDB não tem total e irrestrita aplicação, sendo possível, sim, que a lei geral revogue a lei especial em algumas oportunidades.
Para tanto, submete-se a questão aos ensinamentos de Tércio Sampaio Ferraz Júnior [16], ao afirmar que:
“Num sistema, dinâmico por definição, normas deixam de valer.
A questão de saber-se quando uma norma perde a validade, quando deixa de pertencer ao sistema ou é substituída por outra, tem uma relevância especial para a dogmática. E preciso conceituar operacionalmente a dinâmica.
Já mencionamos duas regras estruturais que regulam a dinâmica: a mais importante diz que uma norma perde a validade se revogada por outra.
Essa regra especifica-se em três outras: a lex superior (a norma superior revoga a inferior na hierarquia), a lex posterior (a que vem por último, no tempo, revoga a anterior) e a lex specialis (a norma especial revoga a geral no que esta tem de especial, a geral só revoga a especial se alterar totalmente o regime no qual está aquela incluída).”
Assim, verifica-se possível dentro das análises do autor que a lei geral pode, sim, revogar parte da lei especial, alinhado ainda com o que já se encontra supra explanado, qual seja, um novo dispositivo que agora regulamenta matéria que tratava o dispositivo da lei especial e, incidindo-se desta feita, no que prescreve o art. 2º, parágrafo primeiro, da LINDB.
Ademais, como já visto, a especialidade do art. 90-C da Lei Pelé perdeu sua essência com a edição do art. 507-A/CLT, posto que a condição de ser daquele foi ceifada pelo último, uma vez que a impossibilidade prevista em 2011 não mais existia em 2017.
Portanto, para se concluir pela derrogação no caso em tela, não basta contestar a ocorrência pelo fato de que “a lei geral posterior não revoga lei especial anterior” às cegas, mas sim analisar que, além de ser possível tal revogação, ocorre por questões que não só atingem o âmago do dispositivo, mas as razões de sua criação.
Em suma, tem-se de um lado, a inserção do parágrafo único no art. 90-C por não se admitir a arbitragem em dissídios individuais; de outro o art. 507-A/CLT expressamente autorizando arbitragem em dissídios individuais. Não se identifica outra consequência, senão a derrogação direta do referido dispositivo.
Possíveis Modificações Legislativas
O Projeto de Lei 5.082-A/2016
No mesmo esteio das explanações acima realizadas, tramita no Senado Federal o Projeto de Lei 5.082-A/2016 [17] , que busca a alteração do art. 28 da Lei Pelé justamente para retirar a obrigação de previsão da arbitragem em acordo ou convenção coletiva de trabalho, como determina o parágrafo único do art. 90-C.
Segundo o Projeto de Lei, o texto passaria a vigorar da seguinte forma:
Art. 51. A Lei nº 9.615, de 24 de março de 1998, passa a vigorar com as seguintes alterações:
“Art. 28º (…)
(…)
§12. No contrato especial de trabalho desportivo com remuneração mensal superior a 2 (duas) vezes o limite máximo do salário de contribuição do Regime Geral de Previdência Social, poderá ser pactuada cláusula compromissória de arbitragem na forma do art. 507-A da Consolidação das Leis do Trabalho, aprovada pelo Decreto Lei nº 5.452, de 1º de maio de 1943, não aplicada, nesse caso, a exigência de previsão em acordo ou convenção coletiva estabelecida no parágrafo único do art. 90-C desta Lei.”
Não diferente do que foi exposto anteriormente neste ensaio, o Projeto de Lei demonstra o entendimento que a Lei Pelé deve se adequar ao que a CLT já determina, qual seja, a arbitragem sem necessidade de previsão em acordo ou convenção coletiva de trabalho:
“Por isso entendemos oportuno acrescentar disposição expressa sobre a arbitragem, a fim de destacar a importância desse método de solução de conflitos, prevenir possíveis controvérsias sobre seu procedimento e deixar claro que, no caso dos trabalhadores que recebam a remuneração mínima prevista no artigo 507-A da CLT, não se aplica a exigência de previsão em acordo ou convenção coletiva de trabalho estabelecida no parágrafo único do artigo 90-C da Lei nº 9.615, de 1998.”
O Projeto de Lei já foi aprovado na Câmara dos Deputados, sendo remetido ao Senado Federal para apreciação e tramitação.
O Projeto de Lei do Senado 68/2017 – Lei Geral do Esporte [18]
Este projeto está tramitando no Senado Federal desde o ano de 2017 e segue em andamento, sem horizonte para sua eventual conversão em Lei.
Contudo, merece ser destacada a previsão da arbitragem no esporte, no mesmo traço lógico apontado pelo texto originário do art. 90-C da Lei Pelé, a saber:
SEÇÃO IX DOS MEIOS ALTERNATIVOS DE RESOLUÇÃO DE CONTROVÉRSIAS NAS RELAÇÕES DE TRABALHO ESPORTIVO
Art. 99. As controvérsias decorrentes das disposições constantes deste capítulo, inclusive as advindas da relação de emprego, poderão ser resolvidas de forma definitiva através de métodos alternativos de resolução de conflitos, incluindo arbitragem ou mediação.
Parágrafo único. A adoção da arbitragem e da mediação constará de cláusula compromissória presente na respectiva avença, inclusive no contrato especial de trabalho esportivo, ou em disposição presente em convenção ou acordo coletivo.
Verifica-se a alternativa constante na essência do art. 90-C, donde se depreende que a arbitragem pode estar prevista no contrato especial de trabalho desportivo ou em acordo ou convenção coletiva de trabalho.
Caso referido Projeto seja convertido em Lei, restará expressamente revogada a Lei Pelé, nos termos do art. 270, I, do texto atual do Projeto de Lei.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O presente artigo serve como início do debate acadêmico acerca da vigência e aplicabilidade do art. 90-C, parágrafo único, da Lei Pelé em face à Reforma Trabalhista. Para tanto, buscaram-se elementos constantes na raiz, na essência da criação do dispositivo legal, para se verificar sua adequação em face à nova realidade jurídica do Direito Trabalhista pátrio.
A redação do referido artigo iniciou-se em 2005, concluindo-se em 2011 com a sua inserção na Lei 12.395/11, que alterou a Lei Pelé. Contudo, a redação foi alterada ao longo do Projeto de Lei, culminando na inserção do parágrafo único com a redação atual, donde se depreende que a arbitragem somente pode ocorrer se estiver prevista em acordo ou convenção coletiva de trabalho.
Não se pode olvidar ao fato de que este requisito era deveras importante a luz da realidade jurídica no período entre 2005 e 2011, uma vez que não se era permitida a arbitragem em dissídios individuais e, atuando desta forma, o legislador achou uma saída para, ao menos, permitir a arbitragem no âmbito esportivo trabalhista. Para tanto, tomou emprestada a regra dos dissídios coletivos, qual seja, a possibilidade da arbitragem mediante acordo ou convenção coletiva de trabalho, uma vez que as partes estariam protegidas pelos seus representantes sindicais.
Uma vez criado o art. 507-A/CLT, a realidade jurídica da matéria foi bruscamente alterada e a razão de ser do parágrafo único do art. 90-C da Lei Pelé deixou de existir. Assim, tendo este referido dispositivo sido positivado desta forma exclusivamente por conta da impossibilidade de se ter arbitragem em dissídios individuais, perde sua vigência e eficácia pela adoção da Reforma Trabalhista.
Com isto, tem-se um caso de derrogação tácita do parágrafo único do art. 90-C da Lei Pelé, no tocante à necessidade de previsão da arbitragem em acordo ou convenção coletiva de trabalho, pelo art. 507-A/CLT, nos termos do art. 2º, parágrafo primeiro, da LINDB, uma vez que o segundo passou a regular a matéria inserta no primeiro, destacando-se ainda que os demais termos do referido artigo permanecem vigentes e intocados.
Procurou-se traçar a base jurídica para explicar referida derrogação e como isto está inserido no campo da antinomia jurídica sem, contudo, entrar nos pormenores do fenômeno; apenas o suficiente para comprovar que é possível a revogação de lei especial pela lei geral, bem como o fato de que não só este artigo da CLT passou a ser a previsão especial para a matéria, como o parágrafo único do art. 90-C da Lei Pelé perdeu sua especialidade neste aspecto.
Por fim, o principal objetivo do trabalho foi, ao menos, fornecer conteúdo acadêmico para que a discussão possa se estender na comunidade jurídica, com o fito de se alcançar ainda mais conclusões sobre o assunto – ainda que contrárias à posição ora estabelecida.
REFERÊNCIA
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SOUSA, Pedro Henrique Bandeira. A Câmara Nacional de Resolução de Disputas da CBF: Instauração do Processo, Procedimento e Natureza das Decisões à Luz do Instituto da Arbitragem. Anuário MH 2019. 1ed. Florianópolis: Conceito Editorial, 2019, v. 1.
SOUSA, Pedro Henrique Bandeira. The Arbitral Nature of the Dispute Resolution Chamber – Discussion on the necessary requirements for the decisions of the FIFA Dispute Resolution Chamber to be recognized as arbitration awards (Dissertação de Mestrado). Católica Global School of Law, Universidade Católica Portuguesa (Portugal), 2019. VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito civil: parte geral. 17. ed. São Paulo: Atlas, 2017.
1. Boletim da CNRD. Outubro/2016 a Maio/2020. Disponível em pdf, acessado em 30 de outubro de 2020.
2. Regulamento da Câmara Nacional de Resolução de Disputas, versão 2020. Disponível em informes/resolucao-litigios/regulamento-da-cnrd, acessado em 17 de novembro de 2020.
3. Projeto de Lei 5.186/2005. Disponível em, acessado em 18 de novembro de 2020.
4. Parecer sobre a Medida Provisória, em substituição à Comissão Mista, proferido no Plenário da Câmara dos Deputados – Relator: Deputado José Rocha (PR-BA). Disponível em materia/99072, acessado em 19 de novembro de 2020.
5. SOUSA, Pedro Henrique Bandeira. The Arbitral Nature of the Dispute Resolution Chamber – Discussion on the necessary requirements for the decisions of the FIFA Dispute Resolution Chamber to be recognized as arbitration awards (Dissertação de Mestrado). Católica Global School of Law, Universidade Católica Portuguesa (Portugal), 2019.
6. SOUSA, Pedro Henrique Bandeira. A Câmara Nacional de Resolução de Disputas da CBF: Instauração do Processo, Procedimento e Natureza das Decisões à Luz do Instituto da Arbitragem. Anuário MH 2019. 1ed. Florianópolis: Conceito Editorial, 2019, v. 1.
7. Projeto de Lei de Conversão 1/2011. Disponível em materia/99072, acessado em 18 de novembro de 2020.
8. Inserido como no original, onde já constam os destaques.
9. Vide nota 4, p. 62.
10. PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil, v. I. Atual. Maria Celina Bodin de Moraes, 30. ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Forense, 2017, p. 116.
11. FERRAZ JÚNIOR, Tércio Sampaio. Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão, dominação. 4. ed. São Paulo: Atlas, 2003, p. 198.
12. “Cessando a razão da lei, cessa também a própria lei”.
13. PEREIRA, Caio Mário da Silva. Op. cit., p. 117.
14. “Lex posterior generalis non derogat legi priori speciali”. BOBBIO, Norberto. Teoria do Ordenamento Jurídico. 2. ed. São Paulo: Edipro, 2014, p. 94.
15. O estudo das antinomias jurídicas carece de um ensaio próprio, não se pretendendo sob qualquer ótica o seu esgotamento nesta oportunidade a luz da discussão entre os dispositivos legais antinômicos. Contudo, os debates aqui trazidos são trabalho.
16. FERRAZ JUNIOR, Tércio Sampaio. Op cit., p. 197.
17. Projeto de Lei 5.082/2016. Disponível em , acessado em 19 de novembro de 2020.
18. Projeto de Lei do Senado 68/2017. Disponível em , acessado em 19 de novembro de 2020.